sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
Para o paladar e a alma
O rótulo estava prejudicado. Mas o conteúdo, perfeito. Abri esse Montesodi Castelo di Nipozzano Chianti Ruffina DOCG 2005 um pouco incrédulo. Quase uma década de produção, rótulo mofado, rolha um pouco ressecada. Mas girei o saca-rolhas para ver como esse cru da família Frescobaldi atravessou o tempo. Um vinho de uma excelente safra, com pontuação alta, para seu estilo, nos guias e revistas internacionais, entre eles a Wine Spectator.
Comprei a garrafa quando visitei o Castelo de Nipozzano, na Toscana, em outubro de 2008. Uma propriedade linda, lendária. Uma família que produz vinhos há séculos na Itália central. Vinhos referenciais, italianos até a medula, gastronômicos e de personalidade.
Cheguei ao Brasil, coloquei o vinho dentro de uma adega improvisada, feita com esses tijolos vazados que, juntos, lembram uma colmeia. Estava em meu escritório. Minha adega climatizada estava lotada. Mexendo na colmeia, exatos seis anos depois de tê-lo comprado, reencontrei o vinho. Fiquei surpreso. Não me lembrava mais da garrafa. Essa é uma das coisas fascinantes, ao não catalogar vinhos. Você “perde” e o reencontro é sempre surpreendente. É como se você tivesse ganho um presente.
Abri o vinho. A rolha ressecada deu um pouco de trabalho para ser extraída. Mas consegui. No copo, a cor rubi granada mostrou tratar-se de um vinho maduro, adegado. Havia um pouco de depósito. Levei o copo ao nariz. O aroma estava fantástico. Ameixas e groselha negras, notas de couro, toques balsâmicos, húmus, aqueles perfumes clássicos da evolução. Em boca, acidez viva, taninos muito redondos, corpo agradável, maduro, equilibrado. Bebi com sabor de vitória.
O Castelo di Nipozzano Chianti Ruffina é um cru feito exclusivamente com uvas Sangiovese do vinhedo Montesodi. Um vinhedo com vocação para a casta emblemática italiana. O solo é argilo-calcáreo. A altitude, de 400 metros. O vinho passa 18 meses em barricas de carvalho. Tem estrutura para isso. A primeira garrafa foi lançada em 1974. Ele só sai em safras de qualidade. Tive o prazer de comprar e provar uma garrafa.
Recostei-me na poltrona, coloquei mais um pouco no copo. Momentos e surpresas como essa fazem bem ao paladar e à alma.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
O desafio dos chefs: muito mais que um “reality show” na TV
Gosto da cozinha contemporânea. Há chefs muito competentes produzindo receitas e pratos deliciosos,
coloridos e criativos. É uma cozinha importante para atender paladares
desejosos de uma culinária moderna, que funde ingredientes e técnicas de várias
culturas alimentares. Essa cozinha contemporânea, cercada de glamour e citações
em guias e revistas de consumo, convive com uma irmã mais discreta: a cozinha
clássica, praticada pela grande maioria dos restaurantes e donas de casa, mundo
afora. Apesar de, literalmente e entre aspas, “menos brilhante”, essa cozinha é
rica em tradições e sabores. E pratica-la com competência e elegância é um
desafio cotidiano para novos chefs desse
vasto Brasil.
A Europa – e consequentemente os países que integram o
velho continente – valoriza muito a cozinha clássica. Em qualquer cidade, seja
em Portugal, Espanha, França ou Itália, os restaurantes oferecem, de maneira
simples ou sofisticada, o que há de melhor no leque de ingredientes e pratos
tradicionais daquela região e país. Isso ocorre muito nos roteiros de vinhos.
Nas viagens enoturísticas, o menu tradição, aquele composto por pratos da
culinária clássica regional, é sempre o primeiro a ser oferecido aos visitantes.
E normalmente são os cardápios mais requisitados. Afinal, quem quer conhecer
vinhos quer conhecer os parceiros das harmonizações clássicas.
Vou usar Portugal como referência. E começarei por um
clássico: o bacalhau. Esse peixe desidratado – e seus preparos tradicionais – é astro em
qualquer lugar de Portugal. Seja ele apresentado de forma clássica - em pratos como
Bacalhau à Lagareiro, à Gomes da Costa, à Zé do Pipo - ou contemporânea, como num prato que provei recentemente no Café Lisboa (www.cafelisboa.pt),
na capital portuguesa, o mais novo restaurante do estrelado chef José Avillez.
Com salão dentro do Teatro Nacional de São Carlos, o Café
Lisboa tem decoração e menu que conjuga o tradicional com o contemporâneo.
Provei ali, entre outros preparos, o “Bacalhau à Brás com Azeitonas
Explosivas”. A base do preparo é o clássico bacalhau desfiado, salteado com
ovos batidos e batatas-palha. Sobre ele, porém, repousavam azeitonas não
tradicionais. Segundo o restaurante, trata-se da “esferilização do sumo das
azeitonas”, um preparo da cozinha molecular. Quem vê, pensa tratar-se de
azeitonas tradicionais. No entanto, elas se assemelham a pequenas bexigas, de pele
muito fina, cheias de suco de azeitonas. Quando você morde, a pele rompe,
inundando a boca com o sabor líquido de uma azeitona tradicional. O encontro do
clássico com o contemporâneo.
Na Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, na região do Douro,
conheci um pouco mais da cozinha tradicional portuguesa com roupagem
contemporânea. Entre os pratos que provei, deliciei-me com um “Secreto de Porco
com Chutney de Pêssegos”. O secreto é um corte literalmente escondido
entre as camadas de toucinho do suíno. Ele pesa cerca de 600 gramas e é rico em
gordura entremeada. Classicamente, o secreto é grelhado com sal, um toque de
alho e uma folha de louro. Na Quinta Nova, o chef José
Pinto preparou a carne com chutney de
pêssegos. Uma fusão da cozinha portuguesa com a inglesa. Como moldura, uma
apresentação contemporânea. Estava ótimo e o prato realçou o secreto, pouco conhecido
no Brasil e um clássico entre os portugueses.
Azeitonas explosivas sobre um clássico Bacalhau à Brás
(Foto de João Lombardo)
Vi, igualmente, um show de cozinha tradicional, com
pinceladas contemporâneas, no Mercado da Ribeira, em Lisboa. O antigo mercado,
transformado em um moderno centro gastronômico, abriga dezenas de restaurantes.
O vão central do edifício é loteado por extensas mesas comunitárias. Um lugar
descontraído, de comida igualmente
descontraída, mas muito boa e a preços muito justos. Um espaço para se provar pratos internacionais e, principalmente, desfrutar de uma releitura da
cozinha tradicional portuguesa.
A revelação de que o tradicional secreto pode ser contemporâneo
(Foto de João Lombardo)
No Mercado da Ribeira há restaurantes de alguns renomados chefs portugueses. Entre eles, Henrique
Sá Pessoa e Alexandre Silva. De
Alexandre Silva, provei pratos feitos com ingredientes da tradição, apresentados
de maneira elegante e, por que não dizer, sofisticada. Tudo a preços entre 4 e
10 Euros (mais ou menos entre R$ 13 e R$ 34 o prato).
Fartei-me com a Sardinha Marinada, uma espécie de ceviche de sardinhas cobertas por lâminas de
tomates frescos, folhas de rúcula e broa esfarelada. Um preparo suave e saboroso. Outro prato foi a “Farinheira de Porco
Alentejano Assada” servida com picles de rabanete. Um enchido clássico
português, modelado de maneira diferente, no formato de cubos cobertos com fios
coloridos do picles. Aos olhos, um preparo contemporâneo. Ao paladar, o gosto
clássico da farinheira portuguesa.
Sardinhas marinadas: coloridas e muito saborosas
(Foto de João Lombardo)
O Brasil tem uma culinária fantástica, no litoral e na
área continental. Tem ingredientes exóticos, vindos das
culturas alimentares do índio, dos africanos, somados a técnicas trazidas pelos
colonizadores europeus. Valorizar a cozinha nacional, seus ingredientes e
técnicas, é um passo importante para a valorização cultural da cozinha e da
enogastronomia brasileira, no momento em que este assunto entrou em pauta. Engrandecer
os ingredientes da terra, transformar o que é “simples” – novamente entre aspas
– em preparos nobres e elegantes, não necessariamente sofisticados, bem feitos e
bem apresentados. E também criar, ousar nos ingredientes, combinações e
apresentações. Esse é o jogo.
Fundir a cozinha clássica e a cozinha contemporânea é um
saboroso desafio para as novas gerações de chefs
brasileiros. Juntar ingredientes e técnicas da cozinha da memória, da
cozinha regional, às boas ousadias e reinterpretações da culinária moderna. Há chefs que já fazem isso com maestria, em restaurantes renomados. Seria interessante levar esse conceito também
para restaurantes mais acessíveis à maioria da população.
O que o turista quer, quando chega numa cidade ou país estrangeiro,
é conhecer a natureza, a paisagem urbana e partilhar um pouco da cultura local.
A culinária sempre foi parte importante dessa cultura. A Europa que o diga. E nada
melhor do que oferecer aos turistas uma boa mostra da culinária regional, em
sua versão original ou com pinceladas inovadoras e elegantes. Um desafio muito mais
“reality” do que os “shows” culinários que se multiplicam nas emissoras de
televisão de todo o mundo.
(João Lombardo)
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